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Foto do escritorMaria do Mar Vieira

Infância

Atualizado: 8 de nov. de 2019

Tenho recebido imensas mensagens, muitas de apoio e coragem. Entre elas surgem frequentemente perguntas: como era a minha infância? com quantos anos fui diagnosticada? como é que lidei com isso? Surgem também muitas mães desesperadas, sem saber como ajudar os seus filhos. Nos próximos posts vou contar um pouco da minha história para dar esperança e coragem a todos aqueles que estão a passar e a sentir aquilo que eu senti. Espero transmitir-vos um pouco de inspiração e força pois por muito difícil que possa estar a ser agora, tudo vai melhorar e dias felizes virão. Eu sou um caso real disso. Hoje vou falar-vos da minha Infância.



Sempre fui considerada uma criança normal. Falava, andava, brincava como qualquer outra criança. Os meus pais diziam que quando era bebé tinha sempre os olhos muito abertos, olhava as coisas fixamente, sempre muito atenta a tudo. Apesar de ter começado a falar um pouco mais tarde, exprimia-me muito bem com gestos e sons e os meus pais percebiam o que eu queria transmitir. Sempre muito educada, tal como me ensinaram, cumpria todas as regras, regras essas que levei demasiado a sério pela minha vida fora. Era apenas uma criança tímida, mas como eu havia mais assim. Não era caso para preocupação. Hoje a minha família conta certas histórias que poderiam ser um indicador de que algo se passava, se tivessem estado mais atentos. A minha avó conta que sempre que passava um semáforo vermelho, eu desatava a chorar desenfreadamente. Para mim aquilo era um incumprimento de uma regra, algo que para mim era muito grave. Quando ia passar os fins de semana a casa da minha avó, aquilo que mais gostava de fazer logo que chegava era arrumar a roupa no armário. A minha avó sentava-se na cama e eu tirava peça a peça da minha mala, mostrava-lhe, dobrava-a muito bem dobradinha e arrumava-a na prateleira. Era um ritual que eu apreciava bastante. Ver a roupa aos poucos a ser colocada nas prateleiras, a ficar tão organizada…com as camisolas de manga comprida num lado, as t-shirts do outro, as calças, calções e saias na prateleira de baixo e ainda os casaquinhos arrumados num cantinho. Era algo tão bonito, tão relaxante para mim.

Em casa, quando brincava, tinha de, no final, arrumar sempre tudo. Quando a minha mãe me chamava eu começava a chorar porque não queria sair sem deixar tudo no sítio.

Na escola primária era aquela menina que nunca faltava a um aniversário, achava que tinha de ir, era uma obrigação, um regra. Se me convidam para ir, eu tenho de ir. Nem sequer punha a hipótese de não ir apesar de isso ser para mim o meu pior pesadelo. Pareciam-me milhares de crianças, todas aos gritos, a interagirem entre si. Aquilo assustava-me, não sabia como agir, tinha vergonha de falar, quase sempre ficava a ver as outras crianças brincar. Hoje dou-lhe o nome de jogadora passiva. Prefiro fica a ver os outros a jogar cartas ou jogos de tabuleiro do que jogar. Na minha cabeça estou a responder às perguntas dos jogos ou a jogar e a dar a carta que acho melhor naquela situação. Mas, voltando aos aniversários o pior momento era o cantar dos parabéns. Milhares de vozes desafinadas a cantar em coro uma canção que toda a gente sabia. As suas vozes furavam os meus ouvidos como se fossem agulhas. Era bastante doloroso e perturbador. Mas mais ainda o era no meu aniversário. Além das vozes todas havia o facto de eu ser o centro das atenções. Não sabia e ainda não sei como me comportar nesta situação. É algo bastante assustador, mas nos dias de hoje a minha família já sabe que não gosto e já não me canta os parabéns. Mas naquela altura nem sabia que podia dizer que não queria. Era uma regra para mim. Nos aniversários temos de cantar os parabéns. E aguentava aquele pesadelo. Estava sempre a olhar para a porta à espera que alguém tocasse à campainha, ansiando que fosse a minha mãe a ir-me buscar. Só há muito pouco tempo contei aos meus pais como odiava tanto aniversários e eles ficaram bastante surpreendidos. A minha mãe julgava que eu adorava e tivesse sabido ter-me ia ido buscar sempre mais cedo. Porque é que nunca disse o quanto aquilo era doloroso para mim? Ainda hoje me pergunto isso. Mas lá está, era uma regra e tinha de a cumprir. Não tinha o hábito de dizer como me sentia e ainda hoje me custa, mas agora sei o quanto isso me ajuda. Na altura não sabia, e apenas me tentava comportar como esperavam que eu me comportasse.

Entretinha-me bastante a brincar sozinha. Quando brincava com as Barbies ou os Nenucos, a história era sempre a mesma, era assim que eu gostava. Tirava os bonecos das caixas, montava as suas casas, algo que demorava sempre imenso tempo, depois repetia a mesma história vezes sem conta e por fim arrumava tudo. Quando a minha prima estava comigo, fazia-me confusão não fazermos as minhas histórias, estranhava as coisas que ela mudava, como os nomes dos bonecos ou o caminho que eles faziam de casa até à escolinha, ou até mesmo as roupas. Acho que nunca lhe cheguei a dizer que aquilo não fazia sentido para mim. Fazia-me confusão não fazer a história exatamente como a tinha criado. Por isso gostava de brincar sozinha, era algo mais tranquilo e sem mudanças.

Na altura do Natal, o que mais gostava de fazer era embrulhar presentes. Cheguei mesmo a embrulhar tudo o que havia em casa. Os meus pais contam que eram embrulhos muito elaborados e muito bem feitos. Era algo bastante relaxante. Adorava ver o papel de embrulho, tão bonito com aqueles bonequinhos todos, com aquele brilho que reluzia conforme se mexia nele. Era algo quase hipnótico ver aquilo. Ainda hoje adoro ver coisas a brilhar.

Penso que a minha família nunca se apercebeu destas pequenas coisas, sempre consegui disfarçar bem e fazer um esforço para me integrar ao máximo e agir da maneira mais normal possível. A Síndrome de Asperger nas raparigas é mais rara, sendo os rapazes 10 vezes mais atingidos do que as raparigas. O Autismo manifesta-se de maneira diferente nas raparigas, fazendo com que as pessoas não estejam atentas às verdadeiras caraterísticas deste quando se trata de meninas. Penso que sofremos mais porque o diagnóstico só se faz mais tarde ou talvez até nunca se faça porque conseguimos disfarçar mais as nossas características, tentando adaptar-nos melhor e agir de maneira mais normal do que os rapazes.

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